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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Brinquedo - Jogo e brinquedo: Reflexões a partir da teoria crítica


A tentativa de compreender o papel do jogo e do brinquedo na formação do sujeito tem sido palco de diversas discussões nas mais variadas áreas do conhecimento. Esta temática tem interessado a educadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos, filósofos e historiadores, dada a sua diversidade ante as novas realidades econômicas, políticas e culturais, definidoras do mundo contemporâneo e que retratam, de certa forma, o projeto de modernidade instalado a partir do Iluminismo do século XVIII.
Essas questões devem ser levadas em consideração quando se deseja realizar um estudo sobre jogo e brinquedo em qualquer cultura. Por isso, devemos estar sempre abertos e atentos a possíveis transformações que possam estar ocorrendo no contexto das relações sociais, pois essas podem interferir em mudanças de valores, de conceitos e de atitudes em relação ao jogo e ao brinquedo.
Nossa opção, para efeito deste estudo, foi iniciar com um mergulho na história dessas manifestações para buscar, a partir dela, elementos para a compreensão desse fenômeno na atualidade.
Os jogos ocuparam lugar muito importante nas mais diversas culturas. Segundo Huizinga (1996), na sociedade antiga, o trabalho não tinha o valor que lhe atribuímos há pouco mais de um século e nem ocupava tanto tempo do dia. Os jogos e os divertimentos eram um dos principais meios de que dispunha a sociedade para estreitar seus laços coletivos e se sentir unida. Isso se aplicava a quase todos os jogos, e esse papel social era evidenciado principalmente em virtude da realização das grandes festas sazonais.
O referido autor também fala em características comuns que são encontradas entre jogos e cultos ou rituais como ordem, tensão, mudança, movimento, solenidade e entusiasmo. Além disso, segundo o autor, ambos têm o poder de transferir os participantes, por um espaço de tempo, para um mundo diferente da vida cotidiana.
Adultos, jovens e crianças se misturavam em toda a atividade social, ou seja, nos divertimentos, no exercício das profissões e tarefas diárias, no domínio das armas, nas festas, cultos e rituais. O cerimonial dessas celebrações não fazia muita questão em distinguir claramente às crianças dos jovens e estes dos adultos. Até porque esses grupos sociais estavam pouco claros em suas diferenciações.
Outro fator de extrema importância a ser ressaltado nessas festas era seu caráter místico. Nas representações sagradas, principalmente nas civilizações primitivas, encontrava-se em jogo um elemento espiritual, difícil de definir, algo de invisível e inebriante ganhava uma forma real, bela e sagrada.
Conforme Huizinga (1996), os participantes do ritual estavam "certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem" (p.17). Apesar de esta intenção estar restrita à duração do ritual e da festividade, acreditava-se que seus efeitos não cessariam depois de acabado o jogo; pois sua magia continuaria sendo projetada todos os dias, garantindo segurança, ordem e prosperidade para todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados. Todo ritual, segundo Horkheimer & Adorno (1985, p. 23), "inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia”.
De acordo com uma velha crença chinesa, apontada por Huizinga (op. cit.), é atribuída à dança e à música a finalidade de manter o mundo em seu devido curso e obrigar a natureza a proteger o homem.
Benjamin (1984, p. 109) fala que devemos "aceitar o princípio de que os processos celestes fossem imitáveis pelos antigos, tanto individual como coletivamente, e de que esta imitabilidade contivesse prescrições para o manejo de uma semelhança preexistente”.
Sendo assim, a prosperidade de cada ano dependia de competições e rituais sagrados realizados nas grandes festas. O grupo social celebrava a mudança das estações, o crescimento e o amadurecimento das colheitas, o surgimento e o declínio dos astros, a vida e a morte dos homens e dos animais.
Essas manifestações humanas possuem características de mito, que não deixa de ser uma forma de conhecer, de diminuir o medo. Porém, o mito é cego, repetitivo, sempre igual e é reconstituído a partir do destino, segundo a Teoria Crítica.
A história dos brinquedos também é diversa do que vemos atualmente. Havia certa margem de ambigüidade em torno dos brinquedos, principalmente na sua origem. A maioria deles era compartilhada tanto por adultos quanto por crianças, tanto por meninos quanto por meninas, nas mais diversas situações do cotidiano. Conforme Benjamin (1984), muitos dos mais antigos brinquedos (a bola, o papagaio, o arco, a roda de penas) foram de certa forma impostos às crianças como objetos de culto e somente mais tarde, devido à força de imaginação das crianças, transformados em brinquedos. O autor também fala que os brinquedos, no início, não eram invenções de fabricantes especializados, pois surgiram primeiro nas oficinas de entalhadores de madeira, de fundidores de estanho, entre outros.
Por isso, no início, a venda dos brinquedos não era prerrogativa de comerciantes específicos. Segundo Benjamin (1984, p. 245), "os animais de madeira entalhada podiam ser encontrados no carpinteiro, os soldadinhos de chumbo no caldeireiro, as figuras de doce nos confeiteiros, as bonecas de cera no fabricante de velas”.
Essa forma de produção começou a desaparecer, principalmente com o inicio da especialização dos brinquedos, que passou a ocorrer no século XVIII. Com o desenvolvimento do capitalismo, o brinquedo passou a ser comercializado com fins lucrativos. A partir daí, os objetivos do brinquedo começam a se afastar da sua origem.
Nesse sentido, Benjamin (1984, p. 68) afirma que "Uma emancipação do brinquedo começa a se impor; quanto mais a industrialização avança, mais decididamente o brinquedo subtrai-se ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais”.
Se todo mito é uma tentativa de esclarecimento, toda forma de esclarecimento cada vez mais vem assumindo comportamentos mitológicos, principalmente a partir da era das luzes.
Pela crescente tendência de racionalização, principalmente das sociedades ocidentais, as características do brincar e jogar foram mudando radicalmente. O que antes era motivo de profundas relações familiares, com valores e sentidos culturais muito significativos, torna-se objeto destinado a um público-alvo, com um fim em si mesmo.
Estamos distantes daquela realidade que relatamos anteriormente. Estamos diante, atualmente, de outra configuração.
Aumentam os tipos, as formas, os objetivos, as opções de compra e doação de brinquedos. Conforme Brougère (1997) é preciso aceitar o fato de que o brinquedo está inserido em um sistema social e suporta funções sociais que lhe conferem razão de ser. Diz ainda: "Para que existam brinquedos é preciso que certos membros da sociedade dêem sentido ao fato de que se produza, distribua e se consuma brinquedos" (p. 7).
Muitos dos brinquedos são fabricados para "ensinar" comportamentos, gestos, atitudes, valores, considerados "corretos" em nossa sociedade. Por isso, a maioria deles já vem pronta, catalogada, contendo todas as instruções de uso, idade, sexo, número de participantes, tempo de duração do jogo, basta segui-las (Volpato, 1999). Como diz Santin (1990),
    Infelizmente o homem adulto, do negócio e do trabalho, acabou se aproveitando desta dimensão lúdica da criança. Explorando essa ludicidade da criança, o adulto a induz, com artifícios, a adotar os valores do adulto. A astúcia do adulto começa pela produção de brinquedos que a introduzem no mundo do trabalho e das funções do adulto. (P. 26)
Dessa forma, para garantirem a continuidade dos hábitos de sua coletividade, em nome de uma racionalidade instrumental, os pais procuram direcionar, por meio dos brinquedos e jogos, as atitudes e gestos considerados característicos para cada sexo, para cada idade, para cada situação específica. No dizer de Horkheimer & Adorno (1985, p. 116), "o fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa”.
Para Brougère (1997, p. 63), o brinquedo é a "materialização de um projeto adulto destinado às crianças (portanto vetor cultural e social) e que tais objetos são reconhecidos como propriedade da criança, oferecendo-lhe a possibilidade de usá-los conforme a sua vontade, no âmbito de um controle adulto limitado". Ou, como diz Benjamin (1984, p. 14), "de uma maneira geral, os brinquedos documentam como os adultos se colocam com relação ao mundo da criança”.
Como vimos, muita coisa foi transformada e está continuamente se transformando em nossas vidas, dada a diversidade dos avanços tecnológicos e científicos e do controle da técnica da indústria cultural, com os quais estamos constantemente nos relacionando, diretamente ou não, tendo consciência ou não. Conforme Piacentini (1994, p. 13),
    Nós latino-americanos somos bombardeados cotidianamente pelo pensamento europeu, como precursor da modernidade, e pelo pensamento do Primeiro Mundo econômico-cultural como um todo, destacando o norte-americano, como sintomas do que ocorre ao redor e (por que não arriscar?) dentro de nós.
A autora ainda fala que a realidade tipicamente moderna é assim, uma sociedade de consumo que procura adaptar os indivíduos ao formidável mundo novo da violência, da massificação e do automatismo. E esses comportamentos começam a ser apreendidos como naturais desde muito cedo, ou seja, na infância. Por isso, um olhar à esfera do "semelhante", como nos diz Benjamin (1985), é de fundamental importância para que possamos compreender as diferentes dimensões e razões do saber chamado "oculto". Segundo o autor, esse olhar deve estar voltado principalmente para a reprodução dos processos que engendram tais semelhanças, porém, não perdendo a dimensão de que é o homem quem produz a semelhança, por meio de uma faculdade chamada, não só pelos autores da Teoria Crítica, mimética.
Para Benjamin (op. cit.), essa faculdade humana se constrói na infância, principalmente nos espaços das brincadeiras e dos jogos, que são impregnados de comportamentos miméticos que vão além da imitação de pessoas. Nesse sentido, a capacidade mimética cumpre um importante papel na formação do sujeito, pois é na educação infantil que as crianças se apropriam dos elementos culturais dos adultos, internalizando, reproduzindo e reinventando gestos, modos de andar, de falar, de sentir, de ser. Porém "as crianças não apenas imitam os outros, mas representam e reelaboram o mundo, desenvolvendo com isso, ao brincarem, uma forma de conhecimento não-conceitual" (Vaz, 2000, p. 3).
Os jogos infantis, como nos aponta Benjamin (1985), são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas, pois as crianças não brincam apenas de ser comerciante ou professor, mas também de moinho-de-vento e trem.
No texto "O narrador", Benjamin (1985) discute a importância da experiência vivida para que uma história (ou estória) possa ser narrada. Fala também na riqueza das expressões faciais e gestuais que envolvem o ato de contar uma história. Essas características também podem se fazer presentes ao se narrar um conto de fadas, pois o que atrai muito as crianças são as diferentes expressões corporais representadas pelo narrador, as alternâncias na tonalidade, altura e timbre de voz. Quanto mais real for a representação (mesmo que esteja distante da realidade dita "objetiva"), menor a possibilidades de a criança fazer separação entre fantasia e realidade, imaginação e fato. O que a criança faz nestes momentos é deixar-se impregnar pelo que está sendo dito, expressado, "vivenciado". Esta é uma característica da mímesis.

Gildo Volpato*
www.portaleducacao.com.br

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